OPINIÃO: O dia depois de amanhã

Foto: Alexandre Pelegi

Como num filme-catástrofe a falta de seriedade em relação ao transporte público coletivo pode nos conduzir da pandemia ao pandemônio

RAFAEL TELES

Enquanto o governo decide que Igrejas são serviços essenciais, oferece socorro às empresas aéreas e discute se deve ou não deve seguir todas as demais nações do mundo em relação ao enfrentamento da Covid-19, os sistemas de transporte público brasileiros vão se desintegrando diante de um ensurdecedor silêncio.

Sim, é verdade que a crise está há muito instalada no setor. Também não é fato novo a confusão que se faz entre Política de Transporte e política no transporte, o que também explica, em grande parte, a visão caricata que se construiu na opinião pública – melhor seria dizer no imaginário popular – de que todo o debate sempre se estabelece em torno dos interesses dos empresários do setor, os “tubarões da catraca”, os “reis dos ônibus” – ou seja lá qual for o título extravagante que ajude a vender jornais (ou, mais modernamente, obter cliques).

Em verdade, construímos no Brasil sistemas de transporte público coletivo perversos, num modelo que só funciona se um pobre subsidiar outro pobre. Sim, são só os pobres (ou os empregadores dos pobres) que pagam pela existência do serviço – e também pagam pelos idosos, pelos estudantes, pelos carteiros e por quem mais for alçado à condição de merecedor de uma isenção. Esse modelo, todos sabemos, limita a fome ao dinheiro que estiver disponível a pagar pelo prato – e é óbvio que, em sendo um sistema financiado apenas pelos mais pobres, o tamanho do prato fica sempre aquém da fome.

Presos que estamos a soluções como o vale-transporte, que é positiva mas não alcança  grandes indústrias, bancos ou companhias aéreas – cito esses três segmentos como exemplos onde a despeito de grande capacidade contributiva e incentivo governamental usa-se maciçamente o transporte privado – só conseguimos financiar a operação do transporte público coletivo quando ele usado acima da sua capacidade ótima (afinal, quem paga a tarifa o faz por si e por mais alguém que usa o serviço sem pagar). E sobrevivemos assim até o Covid-19.

A pandemia paralisou o convívio social, as atividades de educação, parte da produção. E se para combatê-la é preciso reduzir a circulação de pessoas, nos restaria paralisar o transporte público coletivo, certo? Não.  De repente, as autoridades brasileiras descobriram que a operação dos sistemas de transporte é essencial ao funcionamento dos hospitais, dos supermercados, das padarias, dos açougues e até das lojas de material de construção – todos, agora, também equiparados em essencialidade ao próprio transporte público. E mais: decidiram que está proibida a lotação dos veículos, agora todos devem viajar sentados (penso que nem o mais otimista dos manifestantes de 2013 imaginaria essa conquista).

E é aí que mora o nosso novo problema. A crise dentro da crise. Ao mesmo tempo que as pessoas reduziram o uso do serviço, foi preciso manter a frota em operação como se a vida estivesse normal. E isso não está sendo um problema em Paris, que vive o mesmo quadro de pandemia, mas onde 60% do custo do sistema de transporte é financiado pelo Estado ou pelas grandes empresas. Nem em Londres, onde uma taxa de congestionamento aplicada aos transportes privados cobre os custos de parte do serviço. Nem mesmo em São Paulo, que destina quase 3 bilhôes de reais por ano para manter o sistema de transporte público com uma qualidade maior que a que seria possível por uma tarifa de R$ 4,25. É em Macapá, João Pessoa, Pelotas, Salvador ou Tubarão que a nova realidade está cobrando o preço mais alto.

Sem outra fonte de custeio que não seja a própria tarifa cobrada dos usuários, que já não usam mais o serviço, o Brasil opera aos olhos do mundo um milagre econômico: espera que empresas privadas comprem combustíveis, peças, pneus e paguem salários com um dinheiro que, simplesmente, não existe. E antes que alguém fale nos “reis dos ônibus” a gente precisa lembrar que o lucro das empresas – pelo menos no caso das urbanas, com contratos licitados, já estava limitado. Diferente das empresas aéreas que aumentam as passagens conforme a demanda, as empresas de ônibus não têm poder para definir nem preço e nem oferta. Nem custo, nem qualidade.

Ao contrário do Boi, da Bala e da Bíblia, representados politicamente no Congresso, o transporte coletivo só conta com a bancada dos ônibus, aquela em que os passageiros tomam assento – enquanto ainda há vagas (e ônibus, claro). Os 107 mil ônibus urbanos brasileiros empregam mais de meio milhão de pessoas diretamente. E, para essas pessoas, bem como para as que dependem do serviço de transporte coletivo (pagando por ele ou não), aparentemente, o Governo Federal e os Governos Locais deixam, nesses tempos de lacração em redes sociais, no máximo, uma hashtag: #elesquelutem.

Rafael Teles, é bacharel em Administração pela Universidade Federal da Bahia, especializado em Planejamento de Transporte e Gestão da Mobilidade Urbana e Diretor de Produto da Transdata

Comentários

Comentários

  1. Claudio de Senna Frederico disse:

    Absolutamente oportuno e realista. Os poderes ouvirão? Mais cedo do que mais tarde ouvirão de qualquer jeito o silêncio da ausência do transporte público.

  2. RodrigoZika disse:

    São muitas coisas graves, o transporte público o dinheiro publico custeia sem nem ter outra opção há anos, se os passageiros que dão lucro diminuem as empresas perdem ou quebram, e o governo arrecada menos, e as empresas especificamente de SP que não possuem reservas de verbas, e ganham em cima de passagens por pura acomodação, vão sofrer as consequências, isso e no transporte, saúde, educação e empregos, seja os atuais ou que serão perdidos infelizmente apos passar a pandemia, resumindo não temos pra onde correr, existe crise interna e externa.

  3. Oswaldo Castro disse:

    Perfeito Rafael.

    Tenho insistido que esta pecha de vilania que persegue o sistema e seus proprietários, historicamente tem dificultado a mudança deste imaginário social. É quase um folclore onde a lenda nem cabe mais na própria estória.

    Não se trata de propor uma campanha marketeira para posar de bom-moço; a sociedade não se deixaria enganar com este tipo de “propaganda”.

    Entre as ações que podem, devem e serão tomadas, uma delas é garantir que todas venham preocupadas em resgatar a imagem e o orgulho de quem opera, regulamenta mas principalmente dd quem usa o Sistema de Transporte Coletivo de Passageiros.

    Muito bom artigo.

  4. Afora isso senhores, vi e li aqui que um tal Piva, poderá comandar 2 linhas da CPTM, ele que será controlador da Itapemirim, empresa deficitária, com problemas juridicos, me dá impressão que veremos reprise de uma novela que já assistimos em Sampa, no caso da VASP e do Mappin, em que o governo negociou a venda da empresa aérea e no fim foi à nocaute, uma rasteira nos paulistas, e no caso do Mappin, um fanfarrão chamado Ricardo Mansur, que hoje mora na Inglaterra, com o a falencia do Mappin e Mesbla, tremendo aventureiro. Com isso espero estar enganado, com este senhor Piva.. É o transporte em jogo.

  5. Paulo Gil disse:

    Amigos, bom dia.

    Algumas questões no texto precisam tem uma leitura mais acurada.

    ” a gente precisa lembrar que o lucro das empresas – pelo menos no caso das urbanas, com contratos licitados, já estava limitado”

    Limitado?

    Como roda articuladinho batendo lata ?

    Como as empresas estão renovando as frotas ? Gratuitamente ?

    “Ao contrário do Boi, da Bala e da Bíblia, representados politicamente no Congresso, o transporte coletivo só conta com a bancada dos ônibus, aquela em que os passageiros tomam assento”

    Negativo, o buzão é muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito mais bem representado do que o boi, a bala e a bíblia juntos.

    Desde sempre o buzão esteve e está sempre muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito bem representado, sempre tem buzão com pitura de políticos nas garagens, me parece que até algumas empresas são de políticos (ou estou enganado?)

    Não vou citar nomes para não incorrer em erros, mas basta ler algumas matérias aqui no DT que estão estão nominadas

    Me respondam:

    O que foi o fechamento da CMTC?

    Alguém lembra da Masterbus, que do dia pra noite nasceu com uma frota zeradinha de Ciferal com chassi VW?

    Que fim deu a CPI do buzão?

    Bom, só uma coisa é certa; o BUZÂO NO BARSILei, não tem nada de bobinho e é muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito bem representado politicamente, ou melhor é politica pura.

    Querem um exemplo:

    Basta ler aqui no DT o que aconteceu com a Leblon em Mauá ou eu to inventando?

    Alguém duvida?

    Compra um buzão usado ou zerado e vê se você começa a operar depois de 60 ou 90 dias?

    Peixe pequeno não sobrevive em mar de TUBARÃO, aliás nunca sobreviveu.

    Deixo claro que nada tenho contra os TUBARÕES, aliás eles sim fizeram o BUZÃO; mas depois que o poder público se meteu aí fedeu (para não falar o português claro).

    A teoria na prática é outra.

    SAÚDE A TODOS!

    Att,

    Paulo Gil
    “Buzão e Emoção é a Paixão”

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