OPINIÃO: Por um CONTRAN mais técnico e participativo

Foto: Pedro França/Agência Senado

LUIZ CARLOS MANTOVANI NÉSPOLI (BRANCO)

Para dar efetividade à gestão e à política nacional de trânsito o Código Brasileiro de Trânsito (CTB), Lei 9.503, de 22 de setembro de 1997, distribuiu as funções normativas, executivas, de fiscalização, policiamento e de julgamento de recursos de multas, segundo um sistema, o Sistema Nacional de Trânsito (SNT), com entidades dos três níveis de governo – federal, estadual e municipal.

Ao todo, contam-se centenas de órgãos de trânsito no país, dentre eles, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), constituído por Ministros do Governo Federal com a prerrogativa de regulamentar os dispositivos do Código. A cada um dos demais entes do SNT cabe cumprir a legislação de trânsito e as determinações do Conselho, o que é alcançado por meio de um conjunto volumoso de procedimentos administrativos, técnicos, operacionais e jurídicos.

Como complemento às atividades da administração pública, agregam-se profissionais e outras entidades e empresa privadas fornecedoras de uma gama enorme de sistemas, equipamentos e tecnologias, centros de formação, clinicas médicas e oficinas mecânicas, dentre outras, completando, assim, a organização da gestão do trânsito.

Em vista da complexidade deste sistema de gestão, regras coerentes e duradouras são necessárias, vez que mudanças súbitas e surpreendentes podem resultar em grandes ajustes na cadeia de procedimentos nos setores públicos com consequências importantes como tempo e consumo de recursos públicos escassos.

Importam, ainda, os impactos que podem causar para o setor privado fornecedor de serviços, que prescindem de garantias para os seus investimentos e de segurança jurídica dos contratos com entes públicos. Por último e não menos importante, mudanças bruscas confundem a população e são prejudiciais à convivência no trânsito, estimulando reações e comportamentos difusos em relação à regras.

Diante disso, convém indagar se o CONTRAN tem toda a capacidade técnica necessária para decidir acerca de um amplo espectro de especialidades presentes no trânsito. Após o veto presidencial em 1997, o CONTRAN passou a contar apenas com representantes dos Ministérios do Governo Federal, sendo suprimidas do texto aprovado no Congresso as demais entidades do SNT e também representações da sociedade civil, o que daria de fato o caráter nacional e sistêmico que lhe faltou nos últimos 20 anos.

Tornou-se um órgão estritamente federal subordinado ao Executivo federal. Argumentou-se no veto do Presidente da República em 1997 que o Conselho seria composto pelos próprios Ministros, porque constituiria um colegiado de alto nível, e que a os demais entes e a sociedade estariam representados nas Câmaras Temáticas. Cientes da impossibilidade de comparecimento dos titulares dos Ministérios, a participação se deu por delegação.

Consideradas as especialidades envolvidas, cujo conhecimento específico deve estar necessariamente presente nos órgãos do SNT, em que consistiria, então, este alto nível, especialmente quando se observa que determinados Ministérios membros não tratam do assunto em suas pastas e têm inúmeros outros afazeres e responsabilidades?

Ao lado da natural falta de especialidade no assunto de muitos Ministérios, verifica-se que o princípio do veto jamais foi atendido, pois raramente são os Ministros que participam das reuniões do Conselho. Em mais de 20 anos foram aprovadas quase 800 Resoluções, e contam-se nos dedos as que foram assinadas pelos próprios titulares das pastas. O “alto nível” tem sido representado neste longo período pós-aprovação do CTB por servidores públicos do sexto escalão da estrutura de governo, não se estabelecendo aqui qualquer demérito à eventual proficiência pessoal de cada um deles.

Na estrutura do Governo Federal a hierarquia tem esta ordem: Ministro, Secretário Executivo, Secretários de pastas específicas, Diretorias e Coordenadorias. Constata-se que raros são os representantes no Conselho que ocupam cargos destes tipos. Sobre eles, ainda, pouco se sabe de sua formação, conhecimentos técnicos específicos de trânsito e em que área trabalham.

Incita-nos a curiosidade saber o que faz o servidor delegado pelo Ministro nos assuntos de trânsito entre uma reunião do Conselho e a seguinte, enquanto o impacto das decisões circula pelo país. Certamente, ao voltar para sua base de trabalho, ele terá que se atarefar dos deveres do seu Ministério com justa razão. Mas seu voto pesa nas decisões do Conselho, cujas decisões são aprovadas por votação. Teria este servidor maior legitimidade do que centenas de autoridades públicas que fazem a gestão do trânsito em todo o país diariamente? Não parece lógico, nem producente.

As Câmaras Temáticas, onde se aprofunda a discussão técnica, são organismos meramente consultivos, sem qualquer poder de decisão. Além do que, mesmo que estudem e sugiram medidas relevantes, suas conclusões podem simplesmente não ser pautadas nas reuniões do Conselho e, mesmo que sejam, haveria conhecimento específico suficiente avaliar e medir as consequências das alterações ou das regras propostas?

A criação do Fórum Consultivo de Trânsito em 2003 (Resolução nº 142, de 26 de março de 2003) buscou contornar este problema. Constituído por representantes dos órgãos do SNT, suas reuniões abriram espaços para debates, opiniões, sugestões sobre a viabilidade de implantação de determinadas regras, evitando-se erros grosseiros de conteúdo ou de implantação. Mas durou alguns poucos anos mais. Depois, as gestões do CONTRAN que se seguiram deixaram de utilizar este mecanismo.

A recente Medida Provisória nº 882 (de 3 de maio de 2019) em tramitação no Congresso mantem a participação exclusiva do Governo Federal no CONTRAN. No entanto, para evitar a baixa representatividade, ela propõe que os representantes sejam servidores de nível hierárquico igual ou superior ao DAS 6, o que significa no mínimo ocuparem um cargo de Secretário nos Ministérios. Na Resolução 777, de 13 de junho deste ano, já se observa esse novo procedimento. Embora não se duvide das excelentes qualificações dos representantes, o seu domínio sobre as matérias em discussão tem a profundidade necessária para votar bem? A MP também abre a possibilidade de participação de representantes de órgãos e entidades setoriais nas reuniões do Conselho, porém, neste caso, sem direito a voto.

Tal proposta melhora o nível de representação, no entanto não garante o saber específico exigido nos temas que o Conselho irá tratar. A persistir este caminho, nos variados temas de trânsito continuam os entes do SNT subordinados a um Conselho que possui menor conhecimento técnico daqueles que devem seguir suas determinações. Não parece lógico. Como agravante, estando os Ministros do Conselho subordinados à Presidência da República, estes seguirão, por dever de hierarquia, as orientações que de lá emanam, que dependerá da postura do ocupante do cargo.

Agora estando a MP em tramitação no Congresso, espera-se que o legislador corrija esta distorção, tendo em mente que o CTB é uma convenção coletiva, cujas alterações devem contar com especialistas e a participação da sociedade. É importante que o Congresso encontre nos debates um formato mais adequado para o fortalecimento do Conselho, garantindo mais simetria nos processos decisórios em relação aos demais entes do Sistema Nacional de Trânsito.

Nada mais justo. Como expressa o §2º do Art. 1º, “o trânsito em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”. Logo, não pode haver protagonismo de um só componente do SNT.

Luiz Carlos Mantovani Néspoli – Superintendente da ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos

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