Audiência na Câmara dos Deputados debate abertura de mercado para o transporte interestadual de passageiros

Sylvia Cotias Vasconcellos, Superintendente de serviços de Transporte Rodoviário de Passageiros da ANTT, prometeu penalidades mais duras para o transporte clandestino no segundo semestre

Com a presença de parlamentares, representantes do Minfra e da ANTT, além de associações de empresas, discussões giraram em torno do PL 3819

ALEXANDRE PELEGI

Num encontro que durou quase quatro horas nesta sexta-feira, 21 de maio de 2021, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara Federal realizou audiência pública para debater as regras que devem nortear o transporte interestadual de passageiros por ônibus.

Com a presença de representantes do Ministério da Infraestrutura (Minfra) e da Associação Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT), o encontro foi conduzido pelo autor do requerimento que convocou a reunião, o deputado federal Rodrigo Coelho (PSB-SC), crítico da concentração de empresas de ônibus nesse segmento.

O debate se pautou basicamente por alguns temas centrais, mas a questão da abertura e da liberdade de mercado foi o tempo todo ponderada pela preocupação com a sustentabilidade do sistema e a garantia dos direitos do usuário, como define a Constituição de 1988.

Como pano de fundo, o principal centro das discussões foi o Projeto de Lei 3819, de autoria do senador Marcos Rogério (DEM/RO), atualmente sob relatoria na Comissão de Viação e Transportes.

Usando dados da própria ANTT de 2019, que apontam que 66% do total de mercados dependia de um único operador, ao passo que 26% possuíam apenas duas empresas operando no país, alguns representantes insistiram na tese que a abertura do mercado para novos entrantes só beneficiará o passageiro, na medida em que mais empresas provocarão maior concorrência, o que aumentará a probabilidade do preço da tarifa ser reduzido.

Parte deste argumento foi utilizada pelo diretor executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia — Amobitec, Flávio Marques Prol, para quem o setor de transporte não pode ignorar os avanços trazidos pela digitalização.

Marilda Silveira, representante da Confederação Nacional do Transporte (CNT), apontou um outro lado: para a Confederação, segundo ela, não se pode olhar apenas o mercado sem pensar no sistema como um todo. “O transporte não pode ser um produto de mercado, mas sim uma responsabilidade do Estado, e isso precisa ser garantido”, disse Marilda.

Para a representante da CNT, o livre mercado não pode colocar em risco o direito de ir e vir das pessoas, como está bem argumentado, segundo ela, no acórdão do Tribunal de Contas da União a respeito da liminar que suspendeu a liberação das linhas de ônibus pela ANTT a partir de 2019.

Outros participantes, como Paulo Resende, pesquisador da Fundação Dom Cabral, a pressa na abertura de mercado pode ser perigosa se for feita sem regulação. Ele insistiu em pontos basilares como o planejamento da demanda tanto atual quanto futura como instrumento de planejamento. E chamou a atenção para o conflito que pode haver de sobreposição de linhas do transporte intermunicipal com o interestadual.

O presidente do Setpesp, Gentil Zenovello, criticou as empresas de transporte colaborativo, que não aceitam as regras do transporte regular. Em resposta, o diretor executivo da Amobitec revelou que a marca alemã Flixbus, que oferece serviço de ônibus intermunicipal na Europa e nos Estados Unidos, vai dar entrada com pedido de autorização para o transporte regular na ANTT.

Jessica Sampaio, advogada da Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros (Anatrip) repetiu em parte os argumentos de que a Associação concorda com a abertura de mercado, mas desde que seja feita com critérios, que é o que não vem ocorrendo com a ANTT desde 2019. Segundo ela, após o decreto presidencial de dezembro de 2019 que instituiu a Política Federal de Estímulo ao Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros, a Agência abandonou os critérios que ela mesma havia definido em 2014.

O representante da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), Fernando de Almeida Fleury, fez questão de reforçar a importância da regulação, lembrando dados como o de que 12% do sistema de transporte interestadual hoje é gratuito.

Citando exemplos internacionais, onde a abertura de mercados se deu sem cuidado, como no caso da Argentina e do México nos anos 1980 e 1990, Fleury citou que os ganhos verificados inicialmente, como redução do preço das passagens, tiveram como consequência um esvaziamento do atendimento às cidades menores, e depois uma quebradeira de empresas que entraram no mercado.

Fleury usou como exemplo de regulação a ser seguido o do setor aéreo, que foi feito de forma adequada.

Igor Guerra, representante do Ministério do Turismo, participou para ressaltar a preocupação da pasta com o fretamento turístico e com o turismo de proximidade. Ele afirmou que o objetivo é fazer uma interface entre o Plano Nacional de Turismo com o Plano Nacional de Transporte do Minfra.

Sylvia Cotias Vasconcellos, Superintendente de serviços de Transporte Rodoviário de Passageiros da ANTT, fez questão de ressaltar o novo marco regulatório do setor que está sendo trabalhado na área técnica da Agência, objeto de audiência pública no início do ano.

Ela prometeu que o novo instrumento será apresentado no segundo semestre para discussões com o Legislativo, e um dos principais destaques, sem descuidar de questões como a viabilidade do sistema, da qualidade do serviço e da modicidade tarifária, é a redução de barreiras para novos entrantes no sistema.

A ideia é ter empresas menores para mercados menores, empresas médias para mercados médios, e empresas maiores para grandes mercados. Da mesma forma que disciplinamos critérios de entrada, temos também bem definidos critérios de saída”, garantiu.

Quanto ao transporte clandestino, Sylvia adiantou que no segundo semestre a ANTT trará novas penalidades “mais gravosas” para as empresas que estiverem operando fora das regras.

Quanto às denúncias feitas junto ao TCU, que culminaram na liminar ainda vigente, ela garantiu que a área técnica do Tribunal já adiantou, diante dos dados apresentados pela Agência, que os principais itens não se sustentam. Logo, ela espera que em breve essa questão poderá ser resolvida.

Por fim, o representante do Minfra, o Secretário Nacional de Transportes Terrestres Marcello da Costa Vieira, encerrou as exposições garantindo que o governo vem seguindo o disposto no Decreto 10.157 de 4 de dezembro de 2019, que instituiu a Política de Estímulo ao Transporte Rodoviário.

Ele fez questão de citar os quatro pontos iniciais do documento que, segundo ele, concentram o que todos os expositores haviam defendido como princípios: a livre concorrência; a liberdade de preços, de itinerário e de frequência; a defesa do consumidor, onde ele fez questão de frisar a garantia da gratuidade hoje já existente; e a redução do custo regulatório.

O relator do PL 3.819, o Deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), participou dos debates para colher subsídios para seu documento sobre o texto final.

PL 3819               

O PL nº 3819/2020, de autoria do senador Marcos Rogério, ressalta que o transporte de passageiros é um serviço público essencial. “Não é à toa que foi alçado à categoria de verdadeiro direito fundamental em 2015, com a redação dada ao art. 6° da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015”, defende o parlamentar.

O senador lembra que a situação de inconstitucionalidade regime de autorização se agravou em 2019, com a edição, pelo Poder Executivo, da Resolução do Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (PPI) nº 71 e do Decreto Presidencial nº 10.157, ambos de 2019, que instituiu a “Política Federal de Estímulo ao Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros”. Esses dois instrumentos estabeleceram a “livre concorrência” e a “liberdade de preços, de itinerário e de frequência”.

Na conclusão, o senador defende que “a alteração do regime de delegação do transporte interestadual é incompatível com a natureza jurídica de serviço público da atividade e impactará, também, os serviços de transporte intermunicipal concedidos pelos Estados, levando ao desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, e, em maior gravidade, desorganização dos sistemas e desatendimento das localidades de menor atratividade econômica”.

E finaliza: “O povo brasileiro não pode ficar a mercê do humor da iniciativa privada para ver o seu direito ao trabalho, à saúde e à educação garantidos. É preciso que haja contratos, com regras, deveres, direitos e obrigações, para garantir um transporte seguro, perene e confiável para a população. O constituinte originário não permitiu à União Federal abrir mão de sua titularidade do serviço público de transporte, muito menos de instituir um regime próprio das atividades econômicas em sentido estrito. Pelo contrário, a Emenda Constitucional n° 90, de 2015, elevou o transporte à categoria de direito fundamental, e, portanto, reforçando ‘função social vital’”.

Hoje o PL 3819 está na Comissão de Viação e Transportes, onde aguarda parecer do relator.

Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes

Comentários

Comentários

  1. vagligeiro disse:

    A existência de serviços “irregulares” sempre se deu tanto pelo motivo que serviços “regulares” são mais caros e de certa forma falhos, do que simplesmente questões de mercado. Alto custo para viagens entre destinos comuns (como Norte e Nordeste ao Sudeste), necessidade de levar muitos objetos (lembremos que as pessoas se acostumaram com os ônibus devido ao fato de que não há tanta regulação quanto ao número de objetos a serem enviados pelo mesmo, migração, trabalhos ocasionais em regiões diferentes, serviços contínuos de fretamento para quem faz “viagens de compras”, etc…

    Até hoje é notório que nem as próprias empresas e nem o Estado (em todas as esferas) consegue pensar em uma solução que integre todos os modais, mas também sem gerar atritos (como a necessidade de ter mais deslocamentos para ir para pontos rodoviários, ou ter menos opções de horários e destinos, mesmo oficiais). A origem do Buser, que eu me lembre, se deu em uma época onde havia muita reclamação de em Minas Gerais não ter operação plena de serviços regulares entre cidades distantes, e a mesma iria tentar operar dentro de Minas, mas foi impedida.

    A discussão do transporte PÚBLICO (estadual, federal e municipal) DEVE ser baseada em Integração. Senão realmente haveria concorrências que não deveriam existir – no entanto ao menos um serviço complementar paralelo SEMPRE deve ser posto como opção, pois nada é perfeito e depender apenas de uma empresa ou de uma linha é ficar a mercê do acaso.

    Quando os governos começarem a entender melhor a mecânica da logística das pessoas – o ir e vir entre estados e municípios, provavelmente teremos um transporte melhor e sem discussões bobas sobre se tem que existir “público ou privado” – até porque não podemos esquecer que apesar de ser um serviço PÚBLICO, ele é operado por concessões cedidas à iniciativa PRIVADA. Se o transporte fosse feito por operadores PÚBLICOS ( seja uma cooperativa ou autarquia), aí era outra história.

    PS: sei que por trás destas licenças de operação públicas, há muito em jogo. Só lembrando que temos um senador dono de empresa de serviços de transporte.

  2. Santos Dumont disse:

    Partindo do princípio que garante o direito ao transporte, e mais ainda ao direito de ir e vir, toda essa discussão sobre a liberação do mercado interestadual vai por terra mediante um só argumento: o Estado deve garantir esse direito ao cidadão, e não aos operadores, por tempo indeterminado e sem que o mesmo direito seja negado a quem se habilitar e provar condições de operar.
    Todas as empresas, dita tradicionais, a pouco mais de 70 anos atrás eram micro empresas, operando linhas pioneiras, e hoje, reunidas em suas associações, usam esse poder corporativo, com tentáculos na Câmara e Senado (e quem sabe também no Executivo) para garantir seus ‘direitos’ e afastar o risco de competição- como é a regra em quase todos os mercados.
    Certamente, as empresas consolidadas em seus mercados a anos, desenvolveram técnicas próprias e operam com produtividade alta. Ninguém, num mercado aberto competirá de igual para igual, mas também não se pode impedir que ‘nichos’ de mercado sejam explorador por novos empreendedores. São as micro e pequenas empresas que garantem a maioria dos empregos nessa atividade é que seguram os trabalhadores em suas cidades do interior e ali geram riqueza, de modo que ao invés da fiscalização do Estado punir os pequenos empreendedores, deve sim criar condições deles participarem, tanto nos fretamentos quanto em linhas regulares.
    Esse discurso liderado por um Senador, com interesses na atividade do transporte interestadual, se dá pensando na classe a qual pertence, não no país. O Brasil clama pela geração de empregos e oportunidades (hoje são 14,5 milhões na linha da miséria, segundo a mídia divulga) e não pode o governo central “proteger” os mercados sob essa chantagem de que empresas irão quebrar, empregos serão afetados, o caos será implantado. Pura balela de quem tem medo da competição, e medo este que faz com que mancomunados com gestores privados de terminais rodoviários em algumas capitais ou centros regionais, estes últimos sequer liberam guichês e baias de acostamento para empresas que buscam viabilizar suas linhas após terem o aval preliminar da ANTT – soa porém como um aval que é dado como que sabendo que logo ali haverá um obstáculo.
    O poder corporativo é forte, mas não é inquebrável. Bem vinda seja a liberação do mercado e a quebra desses cartórios nos transportes coletivos de passageiros.

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