Ícone do site Diário do Transporte

Projeto de gratuidade no Uber em Santa Bárbara d’Oeste e a discussão dos aplicativos tirando passageiros do transporte coletivo

Projeto dá oportunidade para discussões sobre concorrência entre transporte público e por aplicativos. Foto: Divulgação

Proposta do vereador Alex Braga é válida para idosos com mais de 60 anos

ADAMO BAZANI / ALEXANDRE PELEGI / JESSICA MARQUES

Um projeto de gratuidade para passageiros de aplicativos de transporte, como o Uber, tramita em Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo. A proposta, do vereador Alex Braga, conhecido como Alex Backer, é destinada a idosos com mais de 60 anos.

Segundo a proposta, estabelecida por meio do Projeto de Lei 84/2018, o idoso com o benefício da gratuidade deve ter os mesmos direitos garantidos aos demais passageiros. Para ter acesso ao benefício, bastaria, ainda de acordo com o projeto, apresentar qualquer documento de identidade com foto.

Entre as justificativas para o projeto, Alex Backer afirma que a gratuidade aos idosos representa uma condição mínima de mobilidade, assim como viabiliza a concretização de sua dignidade e de seu bem-estar.

“Além do mais, esta Lei direciona mecanismos sob o serviço prestado em regime de autorização, cabeando ao FOP (Fiscalização de Obras e Posturas) do município de Santa Bárbara d’Oeste o cadastramento e fiscalização do serviço”, afirmou o vereador, em nota.

Alex Backer ressalta ainda que os pagamentos para o transporte gratuito aos idosos seriam disponibilizados por empresas prestadoras de serviços de intermediação e será repassado aos prestadores de serviço quando solicitado exclusivamente por aplicativos, sítios ou plataformas tecnológicas ligadas à rede mundial de computadores.

A propositura prevê também que a empresa prestadora de serviços deve repassar o valor integral da viagem aos motoristas que transportarem idosos de maneira gratuita.

OUTRAS PROPOSTAS

O projeto também prevê requisitos mínimos para motoristas de aplicativos, como a obtenção do Certificado de Autorização (CA), expedido pelo FOP (Fiscalização de Obras e Posturas), certidão negativa de distribuição criminal, temor de compromisso de vinculação à empresa prestadora de serviços por meio de aplicativo e comprovante de domicílio em Santa Bárbara d’Oeste.

O projeto também cita que os veículos utilizados no transporte de passageiros deverão ter idade máxima de oito anos a partir do primeiro Certificado de Registro de Licenciamento de Veículos (CRLV), com licenciamento em Santa Bárbara d’Oeste.

Além disso, os motoristas deverão, segundo a proposta, obedecer rigorosamente a capacidade de lotação desse automóvel, conforme o disposto no certificado de registro e licenciamento.

Por fim, o projeto também proíbe que motoristas de aplicativos como Uber utilizem pontos e vagas destinados aos serviços de táxi.

NOTA DO SITE:

Por mais inusitado e carente de outras informações, sobre quem na prática vai subsidiar as gratuidades nos aplicativos, o projeto do vereador de Santa Bárbara d’Oeste dá oportunidade para algumas discussões interessantes, principalmente na necessidade de ação do poder público, em especial dos legisladores, sobre a concorrência entre o transporte por aplicativos e o transporte público coletivo.

Não em todos os deslocamentos do dia-a-dia, como para o trabalho, custeado em grande parte das vezes pelo vale-transporte parcialmente pago pelos empregadores; mas nos trajetos eventuais ou corriqueiros de pouca frequência, como, por exemplo, consultas médicas semanais, os aplicativos como Uber, 99 e Cabify já estão tirando uma parcela não desprezível dos passageiros pagantes dos transportes públicos.

Os motivos são claros: os serviços são mais rápidos, confortáveis, pegam o usuário na porta da origem e o deixam na porta do destino e, muitas vezes, são mais baratos que os custos com passagens de ônibus, trem e metrô. Ainda mais se estiverem juntas duas ou mais pessoas.

O que numa análise superficial pode parecer uma ótima opção para o passageiro, embute, em médio e longo prazo, uma situação que pode levar ao colapso o sistema de transportes coletivos, se nada for feito para deixar o financiamento dos deslocamentos mais justo.

Atualmente, a tarifa de transporte coletivo é alta por uma série de razões conjuntas:

– Os benefícios sociais, como gratuidades a idosos, pessoas com deficiência e estudantes, por exemplo, são na maior parte dos casos bancados pelos passageiros pagantes. Isso porque na maioria dos sistemas não há subsídios públicos. Não se trata de anular estes benefícios que são direitos socais adquiridos, mas buscar outras fontes de financiamento.

– Os modelos tarifários são apenas baseados nos custos e não nos preços dos serviços. Isso pode gerar um círculo vicioso quando há perda de passageiros: quanto menos passageiros, mais cara a tarifa individual e, quanto maior a tarifa, mais passageiros acabam migrando para outras formas de deslocamento.

– A tarifa de ônibus, trem e metrô adota subsídios cruzados para quem mora mais longe e, em geral, financeiramente é mais carente. Um “Uber” pode ser mais em conta em pequenos trajetos, mas em longas distâncias é caro para a maioria da população. Por exemplo: a tarifa é de R$ 4 no ônibus para o passageiro que anda 2 km e para o passageiro que anda 30 km. Se for cobrado do passageiro o quanto ele percorre, a pessoa que anda 2 km pode pagar R$ 1, mas o passageiro que anda 30 km, terá de pagar R$ 10 (valores apenas de suposição).

– Os ônibus, trens e metrô devem cumprir as OSOs – Ordens de Serviços Operacionais, ou seja, devem realizar a viagem no horário e trajeto determinados, mesmo que saiam com pouca gente. Mais uma vez há um subsídio cruzado, já que os horários de maior demanda bancam os de menor fluxo. O aplicativo, uma vez solicitado, tem a certeza de cumprir o trajeto com o passageiro e percorrendo somente o necessário. É claro que pode haver viagens baratas que não valiam a pena. Mas o prejuízo disso será majoritariamente do motorista e não da empresa de aplicativo.

Todos estes “prejuízos” que o transporte público coletivo assume revelam o papel social da atividade, o qual os aplicativos não possuem.

Não se pode, no entanto, frear os avanços tecnológicos e impedir as pessoas de usarem formas alternativas de deslocamento.

Mas é necessário fazer justiça, caso contrário, os sistemas públicos de ônibus, trem e metrô podem perder ainda mais qualidade.

Muito se discute no Congresso a criação da Cide Municipal ou Cide Verde, imposto sobre o litro do álcool e gasolina para que o transporte individual financie o transporte público.

Antes, entretanto, poderia-se cobrar destas empresas de aplicativos taxas que fossem destinadas a financiar as tarifas de trem, metrô e ônibus.

“Ah, mas aí as viagens dos aplicativos ficariam mais caras!” – muitos podem argumentar.

Ué, mas as tarifas de ônibus, metrô e trem podem ficar mais caras com a queda do número de passageiros e ninguém reclama?

Não dá para fazer nada de qualidade (inclusive transporte público) sem dinheiro. E não se trata de lucro de empresário de ônibus, mas de achar formas de o financiamento de tudo ser minimamente mais justo.

Caso contrário, e sem discriminações, enquanto o transporte por aplicativos terá cada vez mais passageiros pagantes, o transporte coletivo ficará com as gratuidades, integrações, horários vazios, longas distâncias e cumprindo um papel social, mas sem recursos suficientes.

É simples: o dinheiro tem de vir de algum lugar. Não pode sair das verbas para hospitais, escolas e segurança.
Assim, a forma mais racional é o transporte individual, ainda mais o remunerado, financiar os benefícios sociais do transporte público.

Uma pessoa no transporte individual proporcionalmente ocupa mais espaço na cidade e gera mais poluição individualmente que o cidadão que está no transporte público.

Logo, o transporte individual gera mais gastos para a manutenção e criação de infraestrutura de uma cidade.

É justo que ambos paguem o mesmo?

Quem ocupa e usa mais deve pagar o mesmo que quem usa mais racionalmente o espaço urbano se deslocando de forma coletiva?

E as empresas que lucram com o transporte individual? Não poderiam contribuir com parte do financiamento do coletivo?

Poderia ser uma compensação ao impacto que suas atuações geram no transporte coletivo.

É hora de repensar a legislação e modernizá-la.

Não se pode impedir o avanço de uma nova forma de transporte, claro. Mas não é um transporte para todos.

É importante deixar claro que o uso do espaço público, que é de todos, não pode ser apropriado por poucos. Nos países europeus, onde essa questão já avançou bastante, quem quer usar mais seu carro precisa pagar o preço justo por isso. Não se trata de “mais impostos”, pelo contrário; se trata de dar uso correto à infraestrutura que foi construída (e é mantida) com os impostos pagos por todos.

O EXEMPLO DE NOVA YORK:

Um dos grandes argumentos das empresas multinacionais de aplicativos de transporte individual é o de que seus serviços reduzem o número de veículos nas ruas das cidades, e contribuem para a redução do trânsito e dos congestionamentos.

A cidade de Nova York, escorada em estatísticas e pesquisas que rebatem tais argumentos, definiu em agosto deste ano uma legislação que impõe um limite máximo para os carros que atuam com serviços de carona paga na cidade, como Uber e Lyft. Além disso, a legislação autoriza a prefeitura a definir um padrão mínimo de pagamento para os motoristas.

O motivo que levou Nova York a comprar essa briga é em essência o mesmo que tem levado as empresas de tecnologia a enfrentar dura oposição em muitas cidades importantes ao redor do mundo: ao invés de melhorar, os aplicativos prejudicam o tráfego, e impactam negativamente no transporte coletivo.

Estima-se que Nova York tenha hoje mais de 80 mil carros de carona paga circulando em suas ruas, com 2 mil sendo acrescidos a cada mês. Esse número, se continuar sem um limitante, pode tanto inviabilizar o próprio segmento, como ainda prejudicar fortemente o serviço de táxis, justamente pelo excesso de oferta.

Um dos estudos que apoiaram a decisão de Nova York identificou algo crítico, que também contesta o argumento das empresas de transporte individual: elas competem com o transporte público, e não com carros particulares.

Outro argumento usado para reforçar a legislação aprovada em Nova York foi de que a grande quantidade de carros de aplicativos está gerando reduções de ganhos aos motoristas. É uma constatação óbvia: sem um limite para a oferta, diminuem os ganhos para todos. Além disso, diminui a incidência de tarifas dinâmicas, que são ativadas nos horários de maior circulação de passageiros.

Por fim, a concorrência sem limite tem levado a problemas sociais graves. Em Nova York o choque negativo no setor de táxis ocasionou o suicídio de seis taxistas em sete meses.

Jessica Marques para o Diário do Transporte

Alexandre Pelegi e Adamo Bazani, jornalistas especializados em transporte

Sair da versão mobile