OPINIÃO: A faixa elevada ou lombofaixa – um dispositivo de sucesso sujeito ao ocaso

Foto: Divulgação Lombofaixa em Fortaleza (CE) - Rua Barbosa de Freitas, em frente à Assembleia Legislativa

MELI MALATESTA

Com surpresa constatamos, no último dia 6 de setembro, que mais uma surpreendente resolução do Contran, a 738, datada de 06/09/2018, cria uma séria de restrições para o uso da Faixa Elevada, ou Lombofaixa como é conhecida pela maioria das pessoas.

[Relembre: Contran estabelece padrões para faixa elevada de pedestres em todo o País]

Surpreendente porque já houve outras anteriormente que instituíram multa a pedestres e ciclistas numa realidade urbana brasileira que deixa muito a desejar no atendimento aos mínimos direitos que estes cidadãos e usuários da via têm no uso dos espaços públicos destinados à mobilidade.

Mas antes de tudo vamos tentar resgatar a história da faixa elevada.  Ela surgiu como um dos dispositivos utilizados no desenho urbano voltado para o acalmamento do tráfego, ou traffic calming. Juntamente com outros dispositivos, como avanço de calçada (o alargamento da calçada na travessia para reduzir a extensão de via a ser atravessada pelo pedestre); o refúgio (uma ilha situada no eixo da via e que permite ao pedestre administrar melhor a brecha veicular para realizar a travessia em casos de vias de mão duplas ou muito largas); as chicanas (o redesenho da pista criando traçado sinuoso que obriga a redução da velocidade veicular); a faixa elevada é, como o próprio nome indica, a elevação da pista veicular nos locais de travessia dos pedestres, na mesma altura da calçada.  Com este formato ela consolida o conceito de total prioridade do pedestre na travessia, ao proporcionar a continuidade do plano da calçada.  Ao mesmo tempo obriga ao condutor a reduzir a velocidade de seu veículo  por partir do mesmo princípio do redutor de velocidade conhecido como lombada, ou mais popularmente conhecido como “o guarda deitado”.

Cada vez mais numerosas nas cidades brasileiras junto com os demais princípios do tráfego acalmado, a partir do início deste século, intervenções na via utilizando faixas elevadas foram sendo implantadas e cadastradas no Contran como projetos pilotos.  Até que em 2014 ela foi finalmente oficializada como dispositivo de travessia através da Resolução 495 do Contran.

Esta resolução, além de estabelecer normas relativas à dimensão e sinalização da faixa elevada, estabeleceu critérios para sua utilização regulamentando a velocidade veicular máxima de 40 Km/h. Os impedimentos à sua utilização limitavam-se aos seguintes quesitos: curva ou interferência que comprometa a visibilidade; rampas superiores a 6%, salvo se justificada pelo órgão de trânsito local; pista não pavimentada e não existência de calçadas (Art. 4º e 5º Resolução 495/2014).

A nova resolução que invalida a anteriormente citada tem como ponto positivo a preocupação com aspectos de drenagem e especificações mais detalhadas do projeto da faixa elevada, resultado do desempenho das já implantadas.  Entretanto, como aspecto preocupante, ela institui uma série de novas restrições ao uso de um dispositivo que tem se mostrado muito eficiente para apoiar com segurança a travessia dos pedestres.

Muitos dos incisos do Art 5º criam uma série de impeditivos e dificuldades que, além de inibirem o uso da faixa elevada em futuras situações, ameaçam a existência de uma série de dispositivos deste tipo já implantados e que têm se mostrado com bom desempenho, sem registro de acidentes veiculares e atropelamentos.  Como exemplo, podemos citar:

IIIem via rural, exceto quando apresentar características de via urbana: em muitas cidades brasileiras vias rurais são itinerários de transporte coletivo, ou tem ao longo de seu traçado a existência de pólos de viagens a pé como escolas rurais ou outros pontos de interesse sem que por este motivo se tornem urbanas;

V – em via com faixa ou pista exclusiva para ônibus: cabe lembrar que as redes de transporte coletivo são alimentadas pelas redes de mobilidade a pé, ou seja, o usuário do transporte coletivo, o passageiro, é, antes e depois de terminar sua viagem de ônibus, um pedestre que necessita realizar travessias destas vias;

VIII – em curva ou situação com interferências visuais que impossibilitem a visibilidade do dispositivo à distância: há vários casos implantados nesta situação e que não ofereceram até o momento risco de acidentes, até porque a faixa elevada é uma lombada muito suave. O cumprimento do disposto neste inciso poderá desviar a localização da travessia elevada do local de continuidade do trajeto a pé e, portanto, o local onde o pedestre deseja atravessar, ocasionando sua rejeição e desrespeito.

IX – em locais desprovidos de iluminação pública ou específica: o cumprimento desta exigência poderá deixar locais de interesse desprovidos de faixa elevada, mesmo considerando o tipo de material que é utilizado para a pintura da faixa e a obrigatoriedade de uso do farol no período noturno pelo condutor.  Neste caso então também não se sinaliza com faixa de travessia normal?

XI – defronte à guia rebaixada para entrada e saída de veículos: é muito complicado o convívio com este impeditivo porque a regulamentação de rebaixamento de guia para saída do lote privado é estabelecida geralmente pelos códigos de obras dos municípios (alguns nem tem) e é mais do que sabido que se extrapola no rebaixo da guia defronte aos lotes com os mais variados usos e pelos mais variados motivos. Os postos de gasolina e outros tipos de estabelecimentos comerciais confirmam a prática.

Além destes mencionados há outros (incisos IV, VI, XII) que, por depender de estudos de engenharia de tráfego, colocam a mercê da tecnologia de trânsito a maior ou menor boa vontade em garantir a prioridade do pedestre garantida pela legislação de trânsito (CTB) e pela PNMU (Lei Federal de Mobilidade Urbana).

Assim teremos que tentar salvar nossos locais seguros de travessia, proporcionados pelas faixas elevadas já implantadas nas cidades brasileiras.  Temos como prazo o dia 30 de junho do próximo ano, dado pelo Contran, para os municípios se adequarem às normas propostas pela nova resolução.  Ou sonharmos com saudades das ótimas intervenções de proteção de travessia, que nunca causaram maiores problemas quanto à ocorrência de acidentes veiculares e atropelamentos e que foram suprimidas.

Ao que tudo indica, as dificuldades criadas para a adoção de um dispositivo tão eficaz para a Rede da Mobilidade a Pé como a faixa elevada só faz sentido  porque certamente compromete a fluidez do fluxo veicular que não pode ser prejudicado.  Até o quanto e quando não sabemos.   Só testemunhamos, dia após dia, cidades brasileiras que tanto privilegiam o automóvel  cada vez mais paradas…

Meli Malatesta (Maria Ermelina Brosch Malatesta) – Arquiteta pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrado em Transporte a Pé na FAUUSP e doutorado em Transporte Cicloviário pela FAUUSP; presidente da Comissão Técnica Mobilidade a Pé e Mobilidade da ANTP. Escreve também para o Blog “Pé de Igualdade”, do site Mobilize.

Comentários

Comentários

  1. Tiago disse:

    Em Baln. Camboriu/SC existem essas faixas. Achei bem positivo, tanto como motorista, como sendo pedestre. Elas dão uma boa acalmada no clima do entorno das vias. É uma grande sensação de segurança

  2. Nei disse:

    A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. A faixa elevada, dispositivo criado com uma boa intenção, pode sim estar sujeita ao ocaso. E o motivo, a meu ver, é o seu uso em excesso. Prefeituras pelo Brasil afora estão abusando e vulgarizando esse instrumento. Sem preocupação com o pedestre muitas vezes, espalham faixas elevadas por todo e qualquer lugar, apenas como uma lombada. E isso, num médio prazo pode fazer a população voltar-se contra. Talvez essa tentativa do CONTRAN seja benéfica para a sobrevivência da faixa elevada.

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